O casal ao meu lado 6d214w

Saio de casa cedo, com meu caderno, uma caneta e a necessidade de escrever uma crônica que deve ser publicada em breve. A minha vida tem sido agitada, e vez ou outra me faltam ideias íveis de se tornarem uma história plausível para as duas ou três pessoas que me leem. É por isso que hoje, ao acordar, decidi escrever este texto neste café em que estou agora. Novos ares, novas ideias. Espero.
Peço um café coado. O garçom me traz. Agradeço e dou um sorriso que é o começo de uma risada: não faz muito sentido sair de casa e tomar um café coado, ao custo de R$ 16. Mas ok, talvez seja o preço a ser pago pela inspiração. Inspiração que não vem. Tento uma ou outra ideia e nada. Tento contar aquela história do… Essa também não se desenvolve. Decido, então, olhar um casal que está a algumas mesas distantes da minha. Dou uma golada no café.
Ele veste uma camiseta cinza, um shorts e all-star. Ela veste uma camiseta branca, com uma blusa por cima, uma calça tactel e uma sapatilha verde – um estilo no mínimo diferente. Eu não sei o nome deles, então invento: João e Maria, já que não sou tão criativo assim. Ouço pouco o que conversam, mas uma ou outra palavra o meu ouvido capta. Ela não vive no Brasil e eles se conheceram não faz muito tempo, em uma viagem feita por João. Ela é mais velha e mais séria, devolve sorrisos sempre com um olhar meio baixo, quase distante, mas parece, ainda assim, estar feliz; ele, sorriso fácil, debocha de tudo – do cardápio, das plantas que enfeitam o ambiente e até da cara de Maria, preocupada porque tem de conversar com a chefe dela que, se entendi bem, vive na França. Beberico mais um pouco do café.
“Então, Jô, eu ainda não sei se fico mais dias ou não por aqui”, ela diz. “Eu gostaria que você ficasse, Ma. Atravessou um oceano para tão pouco. Eu vou te mostrar o Parque do Ingá, a gente vai comer Cachorrão. Fica”, ele pede, enquanto sorri e aperta a mão dela. Algo me diz que ele está apaixonado – mas ela, ela não. Ela está reticente de alguma forma. Se ela é mais velha que ele, significa que é mais vivida. Se mais vivida… Bem, os próximos dias serão interessantes, no mínimo.
Eu aposto que esse encontro, o fato de ela estar aqui, talvez fosse uma loucura. Ele deve viver em Maringá, ela não, e isso me faz me afeiçoar ao João. Por trás dos óculos que ele usa, vejo o brilho nos olhos, inclusive quando ela diz ter dificuldade em escrever um e-mail e preferir usar o ChatGPT para isso. Cada um ao seu modo está feliz, eu penso. Não sei se são um casal de fato, mas poderiam ser. São bonitos juntos e essa diferença de personalidade, que percebo a algumas mesas, pode ser o diferencial.
Acho que em algum momento, dias antes deste sábado, eles ouviram as músicas dos anos 1990 no carro de João. Ele colocou Raimundos e ela cantou “I saw you saying that you say that you say that you saw”. Ele colocou Raça Negra e ela cantou “Então vem/ Me abraça de vez/ Estou com saudade/ E a sua maldade me faz delirar”. Bebo mais um gole de café.
E aí me lembro dos meus amigos: os que estão solteiros querem ter um relacionamento (com exceção de uma!); os que estão casados querem se separar. Parecem nunca estar completos. E talvez essa seja a sina desse casal, que talvez nem seja casal. o a imaginar que eles se conheceram na viagem de João, que viveram experiências em um país distante e frio; que lá Maria foi a anfitriã perfeita, mas que ela, aqui, vendo como João é na realidade, talvez tenha se surpreendido com alguma coisa diferente e repensado se um amor de inverno se mantém nos trópicos, onde a vida está a mil. Crio, enquanto os observo, as cenas dos próximos dias – nem tudo são flores, e eles terão de viver isso. Bebo mais um pouco do café.
Ela está na casa dele, imagino, e na casa dele ela irá ver algo que vai chamar atenção. Um cabelo de uma mulher ou a louça mal lavada. Quem sabe roupas jogadas no chão. Maria vai interpelá-lo, mesmo que de bom humor, e João, meio sem saber o que dizer, vai dizer qualquer coisa, que não deixará Maria satisfeita. Será uma bobagem, mas eles irão discutir, mesmo não sendo um casal, e ficarão tristes, porque o fim de semana deles não era para ter sido assim. João, por sua vez, irá se martirizar: não seria ela o seu novo grande amor? Não foi sobre ela que ele falou para todos os amigos ao longo dos dias antes da chegada de Maria? João, eu imagino, talvez quisesse que tudo fosse perfeito, mas ele se esqueceu de que a vida real foge aos planos.
Talvez João, depois de tudo, irá tentar pedir desculpas e vá presentear Maria com algo que lhe seja simbólico: uma camiseta que ela usou, algumas fotos daquele fim de semana, um livro. E ela, ainda magoada, irá dizer que ele é fofo, mas que tem de ser melhor, ser outro, não muito outro, mas outro. E assim eles irão se despedir no aeroporto. Ela, com seus motivos que não alcanço, não conseguirá perdoá-lo, e nem irá entender que, para João, ela era, ao menos durante os últimos dias, o mundo dele. Maria irá pegar o avião para uma cidade grande, de onde pegará outro voo e voltará ao local onde mora – Espanha? França? Inglaterra? João seguirá por aqui, e por vários dias se lembrará do que lhe aconteceu, às vezes triste, às vezes alegre, mas nunca indiferente. É que faz sol na América do Sul.
Tenho vontade de levantar, ir até os dois e citar aquela canção do Chico: “Não se afobe, não/ Que nada é pra já/ O amor não tem pressa/ Ele pode esperar em silêncio/ Num fundo de armário”. Mas, epa!, eu estou imaginando tudo. Aqui, nesse café, é o mundo do talvez, talvez, talvez. E que tristeza esse final dos dois, que pode ou não acontecer. Nesse momento, João e Maria parecem as duas pessoas mais felizes do mundo. Torço para que eles permaneçam assim.
Meu café acaba. Vou embora porque, pô, gastar mais R$ 16 em um café coado não dá, né?

Victor Simião, 30, é jornalista e sociólogo. Ele fala sobre livros na rádio CBN Maringá e pode ser encontrado ou no Instagram ou pelo e-mail [email protected]